
Aproveito para postar texto do livro 500 anos da Musica Popular Brasileira que neste periodo de festas de fim de ano encaixam perfeitamente:
"Roda de bamba"
“Existe, no Brasil, um tipo de música da qual todos admitem gostar em determinadas, épocas do ano. Noutras, entretanto, não gostam, ou fingem que não. As razões, muito mais que estéticas, são sociais.
Falamos da musica produzida pelas camadas menos favorecidas da população do Rio de Janeiro. Gente como Carlos Cachaça, Ismael Silva, Cartola, Silas de Oliveira, Nelson Sargento, Ivone Lara, Monarco. Produtores de gêneros musicais consumidos com muito agrado por todos, desde que seja durante o carnaval, “a festa deles". No resto do ano, por ser identificada com favela, gente pobre, feia e negra, distante dos padrões ”glamourosos" perseguidos com ansiedade pelas classes média e alta nativas, essa música sofre uma profunda discriminação. Preferem outra, mais voltada para os padrões globalizados, de onde foi erradicada a marca de origem. De preferência, se a letra for em inglês.
Mas essa música é muito forte. Tão forte, que atravessa as barreiras da discriminação e está sempre presente, guerrilheira. Nesses especiais anos de virada do século XX para o XXI, então, podemos dizer que a música mestiça do Brasil atingiu um de seus momentos de maior exuberância nacional e, mesmo, internacional.
Por volta de 1930, o encontro do samba de morro com a música produzida na cidade (encontro do tipo Cartola com Noel Rosa) foi marca de enriquecimento para ambos os lados. A música de Noel, classificada como samba urbano, ganhou a necessária pitada de pimenta da Mangueira e renasceu mais brejeiro, conservando, contudo, o bom comportamento poético que o tornava palatável a todos os gostos. E o samba do morro ganhou gravata e sapato. Nessa tradição, chegamos a um Paulinho da Viola, a um Chico Buarque, campeões do “bom-mocismo". Pelos furos da peneira, acabavam passando, também, as Cordas de aço, de Cartola, a Primavera, de Sargento, Meu drama e Sonho meu, dos imperianos Silas e Ivone.
Impressionante que, por mais que se tente entender a lógica do gosto popular, isso jamais se torna possível. Senão vejamos: se Paulinho da Viola, como já se disse, foi aceito por mesclar a tradição africana ao apurado conhecimento melódico e harmônico (Paulinho é músico, fino instrumentista e lutier) e também á irrepreensível poesia, que razões levaram esse mesmo público a reverenciar o lirismo surpreende e guerrilheiro de Candeia, a ideologia de Martinho da Vila, a negritude pura de Nei Lopes e Wilson Moreira, a grandiloqüência barroca de Monarco, a orgulhosa malandragem de Zeca Pagodinho, a carioquice suburbuna de Dudu Nobre? Isso sem falar de Délcio Carvalho, Luis Carlos da Vila, Arlindo e Sombrinha, meu Deus Jorge Aragão!
Os pagodeiros de São Paulo, os sertanejos do centro-oeste, os mineiros dos clubes de todas as esquinas, os velhos e os novíssimos baianos, mestres do charme e da malemolência, os rastafaris maranhanses, loucos pela Jamaica, as tribos amazonenses garantindo os seus bois, os nordestinos em geral, o povo do sul, enfim, toda essa gente mais ou menos bronzeada ainda mostrando o seu valor há muito tempo abrindo o ouvido do Brasil e do mundo para o nosso som moreno. Mas esta terra é de samba, o samba é o nosso dom e são os ambistas que traduzem a síntese étnica da população desse país, discriminada e ativa, pobre e talentosa, “criloura”, como se diz na Mangueira. Os que estão aí há muito tempo, os que estão chegando e, mais ainda os que ainda vão surgir, sempre, continuando a compor essa roda que é bonita, porque tem a cara e a cor do Brasil.”
"Roda de bamba"
“Existe, no Brasil, um tipo de música da qual todos admitem gostar em determinadas, épocas do ano. Noutras, entretanto, não gostam, ou fingem que não. As razões, muito mais que estéticas, são sociais.
Falamos da musica produzida pelas camadas menos favorecidas da população do Rio de Janeiro. Gente como Carlos Cachaça, Ismael Silva, Cartola, Silas de Oliveira, Nelson Sargento, Ivone Lara, Monarco. Produtores de gêneros musicais consumidos com muito agrado por todos, desde que seja durante o carnaval, “a festa deles". No resto do ano, por ser identificada com favela, gente pobre, feia e negra, distante dos padrões ”glamourosos" perseguidos com ansiedade pelas classes média e alta nativas, essa música sofre uma profunda discriminação. Preferem outra, mais voltada para os padrões globalizados, de onde foi erradicada a marca de origem. De preferência, se a letra for em inglês.
Mas essa música é muito forte. Tão forte, que atravessa as barreiras da discriminação e está sempre presente, guerrilheira. Nesses especiais anos de virada do século XX para o XXI, então, podemos dizer que a música mestiça do Brasil atingiu um de seus momentos de maior exuberância nacional e, mesmo, internacional.
Por volta de 1930, o encontro do samba de morro com a música produzida na cidade (encontro do tipo Cartola com Noel Rosa) foi marca de enriquecimento para ambos os lados. A música de Noel, classificada como samba urbano, ganhou a necessária pitada de pimenta da Mangueira e renasceu mais brejeiro, conservando, contudo, o bom comportamento poético que o tornava palatável a todos os gostos. E o samba do morro ganhou gravata e sapato. Nessa tradição, chegamos a um Paulinho da Viola, a um Chico Buarque, campeões do “bom-mocismo". Pelos furos da peneira, acabavam passando, também, as Cordas de aço, de Cartola, a Primavera, de Sargento, Meu drama e Sonho meu, dos imperianos Silas e Ivone.
Impressionante que, por mais que se tente entender a lógica do gosto popular, isso jamais se torna possível. Senão vejamos: se Paulinho da Viola, como já se disse, foi aceito por mesclar a tradição africana ao apurado conhecimento melódico e harmônico (Paulinho é músico, fino instrumentista e lutier) e também á irrepreensível poesia, que razões levaram esse mesmo público a reverenciar o lirismo surpreende e guerrilheiro de Candeia, a ideologia de Martinho da Vila, a negritude pura de Nei Lopes e Wilson Moreira, a grandiloqüência barroca de Monarco, a orgulhosa malandragem de Zeca Pagodinho, a carioquice suburbuna de Dudu Nobre? Isso sem falar de Délcio Carvalho, Luis Carlos da Vila, Arlindo e Sombrinha, meu Deus Jorge Aragão!
Os pagodeiros de São Paulo, os sertanejos do centro-oeste, os mineiros dos clubes de todas as esquinas, os velhos e os novíssimos baianos, mestres do charme e da malemolência, os rastafaris maranhanses, loucos pela Jamaica, as tribos amazonenses garantindo os seus bois, os nordestinos em geral, o povo do sul, enfim, toda essa gente mais ou menos bronzeada ainda mostrando o seu valor há muito tempo abrindo o ouvido do Brasil e do mundo para o nosso som moreno. Mas esta terra é de samba, o samba é o nosso dom e são os ambistas que traduzem a síntese étnica da população desse país, discriminada e ativa, pobre e talentosa, “criloura”, como se diz na Mangueira. Os que estão aí há muito tempo, os que estão chegando e, mais ainda os que ainda vão surgir, sempre, continuando a compor essa roda que é bonita, porque tem a cara e a cor do Brasil.”
fonte: pag. 159, 160 e 161.
livro 500 anos, da muisca popular brasileira
Fundação Museu da Imagem e do som - RJ - 2001
acervo: Anildo Guedes